domingo, 6 de abril de 2014

O HÁBITO DA MENTIRA -

"Detesto mentira!" Qual foi a última vez que você disse essa frase ou ouviu alguém dizer? Seja como for, quem disse... mentiu. Podemos até falar que odiamos a mentira, mas lançamos mão desse recurso quase sem perceber. Muitas pessoas não querem admitir, mas a verdade é que todos mentem. Seja para agradar a alguém, escapulir de uma encrenca, ser o herói de alguma aventura nunca vivida, levar vantagem na vida. Com suas pernas curtas, a mentira caminha no passo do homem desde que o mundo é mundo — e não dá o menor sinal de perder o fôlego, muito pelo contrário. Todos nós temos um pouco — ou muito — de Pinocchio. Recorrer a desvios da verdade, além de ser quase uma questão cultural, é um recurso de sobrevivência social inescapável. Em geral, mentimos para tornar as interações sociais mais fáceis e agradáveis, dizendo o que os outros querem ouvir, ou para parecermos melhores do que realmente somos. O problema é que meros desvios dos fatos podem crescer e virar uma bola de neve, gerando relacionamentos baseados no engano. Relacionamentos que são verdadeiras farsas. Precisamos ser mais verdadeiros e buscar a honestidade. Na maioria das vezes, a realidade é deturpada sem malícia. São as mentiras brancas, que funcionam, nas palavras dos especialista, como "lubrificantes sociais". Isso não acontece apenas nas conversas entre estranhos, permeia também os relacionamentos mais íntimos. O filósofo chinês Confúcio (551-479 a. C. ) recomendava que se apelasse para esse antiqüíssimo recurso apenas quando a verdade prejudicasse uma família ou a nação. É um conselho estranho, como sabem os dirigentes políticos para quem nunca foi difícil fazer o que pregava o venerando sábio. Aristóteles (384-322 a.C), o pensador grego, só aceitava duas maneiras de mentir: diminuindo ou aumentando uma verdade. O teólogo Santo Agostinho, no século IV, resolveu complicar o assunto descrevendo seis tipos diferentes de mentira: a que prejudica alguém, mas é útil a outro; a que prejudica sem beneficiar ninguém; a que se comete pelo prazer de mentir; a que se conta para divertir alguém; a que leva ao erro religioso; e. finalmente, a que ele considerava a "boa" mentira, que salva a vida de uma pessoa. Para as modernas ciências do comportamento, porém, seja qual for a história falsa, a realidade é uma só: mentira é aquilo que se queria que fosse verdade. Quem nunca inventou uma desculpa esfarrapada para justificar um atraso? Segundo especialistas, as técnicas de dissimulação são aprendidas pelas crianças desde cedo - e não por meio de colegas malandros, mas com os próprios pais. O processo educacional inibe a franqueza. Uma menina, por exemplo, que ganha uma roupa será vista como mal-educada se disser, de cara, que achou o modelo feio. O paradoxo é que, embora a sociedade condene a mentira, quem falar a verdade nua e crua o tempo todo será considerado grosseiro e desagradável. Mentir por educação é diferente de ter um mau caráter, dizem. Para outros, mesmo as mentiras inofensivas devem ser evitadas, com jeitinho. "Nossos filhos não precisam ser rudes e dizer que detestaram um presente", afirmam. Podemos ensiná-los a ressaltar algum aspecto positivo dele, em vez de dizer que gostaram. As inverdades repetidas no cotidiano mascaram os parâmetros que temos para avaliar nossas atitudes e a dos companheiros, gerando todo tipo de desentendimento. Quando estamos diante de alguém que fala muita lorota, não sabemos com quem estamos lidando. "É muito difícil categorizar mentiras e dizer que umas são aceitáveis e outras não", afirma o Psicólogo Feldman. Em alguns casos, os efeitos são irreversíveis. Preocupado em saber se a ex-namorada gostava realmente dele, o estudante paulistano Rogério Yamada, 22 anos, decidiu testar o ciúme dela inventando que a havia traído. "Ela acabou terminando comigo", lembra. "Hoje me arrependo." Quem é enganado também sofre, com mágoa e desconfiança - segundo especialistas, a dor é mais forte quando afeta os sentimentos ou o bolso. É claro que, além das mentirinhas brancas, há aquelas contadas com dolo: são trapaças e traições para beneficiar quem conta ou prejudicar o outro, como ganhar uma confiança não merecida ou cometer uma fraude financeira. Em casos mais raros, a mania de inventar e alterar os acontecimentos pode revelar uma patologia, ou doença. É a chamada "mitomania", ou compulsão por mentir, que precisa de tratamento psicológico. Uma das razões pelas quais contamos tanta mentira é que raramente nos damos mal por isso. O mentiroso tem duas vantagens: a maioria das conversas está baseada na presunção da verdade e é praticamente impossível identificar uma inverdade no ato. A mentira é algo que está presente no nosso cotidiano e que, muitas vezes, sequer o percebemos: a cômoda convivência com a mentira. A todo momento, nos defrontando com a mentira, venha ela de nossa própria parte, venha da parte de nossos interlocutores. Esta é uma realidade constatada pelos estudiosos do comportamento humano que analisaram, em suas pesquisas, mentiras dos mais variados matizes. Mentimos por tudo e por nada, a qualquer momento e em qualquer circunstância, constatam esses estudiosos. E com tanta naturalidade, que, por vezes, parece que conseguimos mentir para nós mesmos. É claro que nada há que justifique o hábito de mentir. Mas, por outro lado, é preciso considerar o momento evolutivo em que nos situamos, ainda muito distantes da perfeição possível a que estamos destinados. Muito presos às questões ligadas à vida material, nossos interesses estão situados muito mais nas circunstâncias da vida de relação do que dos reais valores, aqueles que nos impulsionam ao progresso e à verdadeira felicidade, que são os valores espirituais. Então, sempre que vislumbramos a possibilidade de uma mentira nos proporcionar alguma vantagem, por menor que seja, tendemos a abraçá-la como se verdade fosse, colocando-a a serviço dos nossos interesses. O hábito de mentir se faz presente no nosso cotidiano como um instrumento para alcançarmos o que desejamos. É a mulher que oculta do marido o real valor pago por um vestido; é aquele que inventa uma desculpa aceitável para justificar o atraso ou o desatendimento a um compromisso assumido; para sermos agradáveis e simpáticos, emitimos opinião que vai ao encontro do que o nosso interlocutor quer ouvir e não ao encontro da nossa consciência. Enfim, as circunstâncias são inúmeras e poderíamos desfilar incontáveis exemplos nesse sentido. E sempre procurando legitimar a mentira, como numa espécie de auto-defesa por termos feito algo errado. É costume, também, justificar-se o hábito da mentira sob a alegação de que se trata de uma mentira "inofensiva". Também existem as mentiras por motivos óbvios, em que o pequeno mentiroso sacrifica a verdade para proteger-se da esperada punição por um mau desempenho na escola ou uma travessura que custou a vida de um valioso vaso em casa. A criança mente ainda para extravasar agressividade ou vingar-se de alguém: por exemplo, acusa o irmão de uma falta imaginária para vê-lo castigado e assim aplacar o próprio ciúme. Tudo isso, com mais refinamento, os adultos também fazem. Há, porém, uma diferença. "Não existe uma idade exata para parar de mentir. Mas quando se deixa de viver mentindo é sinal de que já se está maduro". Se a mentira é tão comum, por que todo pai vira uma fera quando flagra o filho mentindo? "Porque esse mesmo pai, embora também minta na sua vida, não deixa de dar o devido valor à verdade."Ele quer que o filho faça o certo pelo mesmo motivo que deseja vê-lo o melhor em tudo." A repressão familiar à mentira faz bem: sem ela, não se aprende a lutar pelas coisas que se quer usando meios legítimos, nem se assume o que se faz— enfim, não se cresce. No final das contas, o adulto que mente constantemente é uma criança que só cresceu por fora. Pois então a mentira é prova de que algo vai mal na cabeça do cidadão — e precisa ser tratado. Os assuntos sobre os quais uma pessoa mente fornecem ótimas pistas sobre as áreas mais problemáticas de seu temperamento, aquilo que ela não enfrenta ou quer esconder — de si mesma. Não menos importante, porém, é a influência da sociedade. Assim como a censura da família é fundamental para conduzir a criança ao bom caminho da verdade, a forma como a sociedade pune a mentira também é. "Num país como o Brasil, em que a impunidade corre solta, mesmo um adulto pode não ver mal algum em mentir". Ai a mentira muda de figura. Já não se trata da necessidade compulsiva de enganar, típica da pessoa imatura, nem das pequenas inverdades que todos contam, seja por piedade, como dizer a um doente que sua aparência está ótima, seja para poupar-se de uma chateação, ao mandar dizer que não se está em casa no momento de atender um telefonema. Quando a mentira passa a fazer parte rotineira do jogo social, — uma técnica de ataque e defesa na competição entre as pessoas por mais riqueza, prestigio ou poder, e ainda na guerrilha entre governados e governantes —, é claro sinal de que o país onde isso acontece não vai bem das pernas. O pior é quando as pessoas mentem e já nem ficam vermelhas. — Ao contrário, até invocam justificativas para as rasteiras que praticam, como o contribuinte que lesa o fisco porque se diz lesado pelo governo que não cumpre o que promete. A mentira envergonhada ainda é uma prova de que se sabe distinguir o certo do errado: assim como a hipocrisia é a homenagem do vício à virtude, ela é uma demonstração indireta do respeito pela verdade. Mesmo o mais descarado dos mentirosos, porém, se entrega. — Só não o nota quem não quer ou não presta suficiente atenção. As crianças podem dizer "sou mentiroso e sou feliz; mais mentiroso é quem me diz". Mas não é verdade: mentira raramente rima com felicidade. Principalmente quando a pessoa se vê forçada a esconder de seu parceiro a realidade. Nas relações amorosas, diz o psicoterapeuta paulista Jacob Pinheiro Goldberg, a mentira costuma ser confundida com a fantasia, pois ambos os processos servem à mesma finalidade: suavizar as situações de tensão. "Mas, na mentira", explica Goldberg, "existe a intenção de iludir o outro em causa própria, e isso implica lesões e mutilações para o relacionamento. Já a fantasia serve muitas vezes para sustentar a qualidade da relação." A mentira no jogo amoroso também sofre a influência dos costumes da sociedade em que vivem os amantes. Quanto mais tabus houver maior será a tendência para a hipocrisia e o fingimento. Poucas coisas são tão complicadas como o conflito entre a verdade e a mentira numa relação afetiva, e os rios de tinta já gastos pelos psicólogos para explicar a questão não conseguem cobrir suficientemente toda a gama de emoções envolvidas nessas situações. É parte do desenvolvimento psíquico de cada um fazer da mentira uma espécie de varinha mágica. Há quem vive para mentir e há quem mente para viver — como os que ganham honestamente o pão de cada dia graças ao fingimento, em tempo parcial ou integral. É o caso, por exemplo, dos atores, que fingem ser personagens; dos médicos, que ostentam nas horas mais graves uma calma fictícia; dos diplomatas, que por dever do ofício blefam à mesa de negociações. As pesquisas indicam que os brasileiros menos acreditados pela população são os políticos. Considerando, contudo, que a mentira quase sempre é praticada buscando defender um interesse pessoal, seja de natureza material ou simplesmente moral, não há como se ver inocência na sua prática, mas, ao contrário, um sinal característico da imperfeição. Para chegarmos à nossa destinação final, teremos que nos despojar de todas as imperfeições que ainda povoam a nossa personalidade. Vamos, desse modo, começar a nos vigiar, para que possamos, pouco a pouco, pois a natureza não dá saltos, ir abandonando esse hábito, mesmo em circunstâncias aparentemente inofensivas. Não esqueçamos a grande advertência do Mestre Maior: “A verdade vos libertará.”

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