domingo, 30 de dezembro de 2012

" P E R D A S "

Amanhã, depois de meia noite, mudaremos de ano. É bem oportuno que façamos um balanço do que foi nossas vidas no ano que ora se finda e, ampliando mais a avaliação, do que temos feito de nossas vidas; que pensemos, sobretudo, as nossas perdas e o que temos feito para com elas conviver. As perdas são constantes em nossas vidas. A partir do nosso nascimento, começamos a experimentar uma sucessão de perdas, mas não somos preparados para lidar com elas. Mesmo constantes em nossas vidas, temos dificuldade em aceitá-las, o que nos provoca amargura e dor. Muitas vezes, usamos do recurso de compensação para amenizar os danos causados pelas perdas. Há quem, por exemplo, opte pelo consumismo, numa tentativa de preencher o vazio criado pelas perdas: gasta o que não tem e compra o que não precisa. Outros há que, sem nenhuma necessidade, começam a furtar de lojas ou de outros lugares, quando têm oportunidade para isso, numa tentativa de compensação pelo que sofreu por causa de uma perda, sobretudo a perda de alguém muito querido que morreu, ou ainda numa tentativa de preencher o vazio deixado pela perda. A morte de alguém muito próximo muitas vezes nos faz perder a direção. Diz a escritora Lya Luft que “Não queremos perder, nem deveríamos perder: saúde, pessoas, posição, dignidade ou confiança. Mas perder e ganhar faz parte do nosso processo de humanização. Perder, dói! Não adianta dizer NÃO SOFRA, NÃO CHORE; só não podemos ficar parados no tempo chorando nossa dor diante das nossas percas. Com as perdas, só há um jeito: perdê-las. Com os ganhos, o proveito é saborear cada um como uma boa fruta de estação." Augusto Cury, por sua vez, nos diz que “uma pessoa imatura pensa que todas as suas escolhas geram ganhos. Uma pessoa madura sabe que todas as escolhas tem perdas.” Morte. A palavra, por si só, já carrega um peso. É a única certeza que temos na vida, a de que todos morreremos um dia. Mas é difícil se preparar para perder alguém. Algumas almas elevadas conseguem lidar bem com as perdas, mas acredito que a grande maioria das pessoas não está pronta para ver arrancado de sua vida alguém que ama. A gente sente uma saudade diferente. É uma saudade amarrada pela certeza de que nunca vai passar. É uma saudade que vai ser eterna. A gente apenas se acostuma a conviver com a ausência, mas não esquece, não deixa de sentir falta… as memórias permanecem, o peito aperta em cada lembrança, e só o tempo mesmo para acalmar o coração… A compreensão da morte vai depender da crença religiosa de cada um. Cada um interpreta o ato de morrer de uma forma diferente. Para alguns, voltaremos em uma nova encarnação; para outros, ali acaba a vida…. Teorias não faltam para tentar explicar a morte… Mas o fato é que é difícil perder alguém. Um vazio parece invadir o peito, a sensação de que você não está vivendo aquilo, uma vontade de que seja tudo um sonho, um desespero que a gente não consegue explicar… O descontrole inicial passa, e você cai na real: a pessoa já não está em sua vida, não daquele jeito a que você estava acostumado. Aquela rotina que vocês cumpriam já não existe. Você sempre espera a pessoa chegar naquela hora de costume, mas ninguém bate à porta… No horário do telefonema, ele simplesmente não toca… Ouvir a voz dando bom-dia, ouvir a voz falando qualquer coisa… As fotos trazem lágrimas, você pensa que podia ter feito tanta coisa mais, pensa que podia ter falado tanto mais, pensa que podia ter feito algo diferente, ainda que não tenha feito nada de errado… Enfrentar a morte é um processo que exige tempo para que consigamos lidar melhor com a situação, com a ausência em si… Perdemos alguém e nunca havíamos pensado no quanto dói perder alguém. Mas a vida segue seu rumo, impiedosa. Os dias continuam passando a cada 24 horas e o resto de sua vida caminha a passos largos, ainda que você precise dar um tempo de tudo. Só que hoje, não temos tempo nem para o luto. Não que ninguém deva se entregar à dor e lá ficar. Não é isso… A questão é que é impossível exigir que funcionemos como se nada tivesse acontecido. É impossível desvincular o emocional das nossas rotinas diárias. Mas a nossa sociedade apressada não quer saber disso. Não temos mais tempo para chorar. Ou então choraremos a caminho de algum lugar, ou enquanto executamos alguma atividade… A fase de luto não é fácil. Dói, machuca… nossas lembranças se viram contra nós, porque trazem à tona as imagens que gostaríamos de esquecer. O mundo não para, os segundos correm, o tempo passa… Sentimos falta de termos mais tempo pra gente. Sentimos falta de termos tempo pra ficar em casa vendo sessão da tarde e comendo pipoca… Porque um dia nós é que vamos morrer… e a perda nos faz pensar no quanto é importante nos preocupar com o que andamos fazendo das nossas vidas… E aí pensa-se: "Eu queria poder ter mais tempo pra chorar!" Um dia seremos cada um de nós, deixando esse mundo. Mas enquanto estivermos nele, escolhamos fazer o melhor pra sermos felizes e viver. Viver mesmo, dedicando tempo àquilo que nos dá prazer, a sentar com nossos amigos, a ficar deitado vendo filme… Toda perda nos faz refletir…. Vamos aproveitar cada momento que nós pudermos ter ao lado das pessoas que amamos. Aproveitar cada segundo ao lado delas… Choraremos pela perda de cada um que amamos, mas faremos brilhar no rosto um riso, por ter podido compartilhar tudo o que foi possível enquanto estávamos ao meu lado. Fazer o luto ou realizar o trabalho de elaboração simbólica da perda são expressões comuns em Psicologia e Psicanálise. Afinal, o que isso significa realmente? Uma primeira resposta é: adquirir capacidade de processar ou digerir o excesso de afetos ligados à perda, e entrar nos processos temporais, humanizando-se. Vamos partir do exemplo de uma criança que perde o pai e sente-se completamente desolada e revoltada. A ansiedade, a culpa e o penar combinados à raiva, à impotência e aos sentimentos de humilhação e desamparo tornam muito difícil aceitar, digerir e modificar os afetos que foram mobilizados. O ferimento da perda precisa ser curado, a ferida precisa ser “pensada”. Os médicos sabem que uma ferida precisa ser “pensada” com remédios e curativos. O analista, médico de feridas afetivas, pode ajudar a transformar alguns afetos, acompanhando a pessoa, escutando-a, dedicando-lhe um tempo, convidando-a a tomar uma certa distância dos acontecimentos em sua brutalidade factual, e desenvolvendo, junto a ela, palavras e pensamentos, a respeito de si e do mundo, que agem como “remédios” da alma. Os afetos transformados não deixam de ser o que são: amor, ódio, inveja, vergonha, culpa etc. Mas tornam-se digeríveis e dão colorido e riqueza à vida psíquica. Pois a dor se modifica quando a pessoa ferida começa a ser escutada com atenção e pode relatar a repercussão dos fatos em seu psiquismo e desenvolver uma interlocução que permite mudar algo na compreensão dos acontecimentos. Algo parece aprofundar-se ou ganhar nuances. Constrói-se uma nova perspectiva dentro do novo enquadramento(setting), algumas coisas se ampliam, outras se reduzem, há um remanejamento de posições e surge um insight, nova visão a respeito dos fatos, construída de forma singular pela pessoa ferida. Essa dor, pensada, é lugar de uma nova criação. Essa criação, por sua vez, ajuda a levar o tratamento um pouco mais adiante: criar é também reparar os estragos reais ou imaginários; criar é também poder agradecer pelo que se recebeu: “de um limão, fez-se a limonada”. Toda análise com base nas teorias de Melanie Klein caminha no rumo de ampliar a capacidade de o indivíduo reparar criativamente e agradecer. Ou seja, reparação e gratidão são, ao fim e ao cabo, os grandes curadores das doenças da alma. Mas curar as dores psíquicas não é anestesiar-se. Ao contrário, é ampliar as capacidades de suportá-las e transformá-las em benefício de si e dos outros. O tratamento kleiniano das ansiedades primitivas tem um inegável sentido ético. Quando isso se torna possível, o contato com a dor, em vez de mutilar ou culpabilizar de forma neurótica, torna a pessoa ferida mais capaz de assumir uma posição ativa; ela se vê compelida a descobrir seu jeito próprio de “dar a volta por cima”. A possibilidade de ser ativo, de transforma a dor em algo interessante, faz perder o medo de ser passivo; abre a possibilidade de sentir mais vivacidade e nitidez, e de se entregar a essa experiência nova – a de ser uma espécie de caixa de ressonância sensível para que a própria vida psíquica possa emergir em todas as suas tonalidades. Aos poucos, perde-se a vergonha de sentir dor psíquica, ao perceber que a dor só diminui e inspira, depois de ser acolhida, vivida, “pensada” e atravessada. As dores e perdas não são propriamente solucionadas, mas podem ser atravessadas de maneiras mais criativas e inteligentes. A dor da perda deixa de ser vista, experimentada como castigo, e passa a ser uma oportunidade de estar mais vivo, em um contato muito mais vibrante com o mundo físico e social. Trata-se de um percurso lento, que ensina a entrar nos processos temporais e a conhecer a duração, a espera. Muitas “fichas” só caem depois, um pouco mais tarde, quando houver tempo de realizar a ligação entre o que se viveu e um mundo de memórias, palavras, estímulos e sensações passadas e presentes. É preciso sonhar a perda, a morte e a situação de solidão. A realidade nua e crua da morte é muito brutal, não conduzindo a nada. É preciso fazê-la entrar em um campo de sentidos para que ela se torne aceitável. A ansiedade arcaica em bruto é uma quantidade avassaladora de afeto sem rosto e sem nome, monstruosa. Ao sonhá-la, ela entra em conexão com palavras, brincadeiras, torna-se ansiedade secundária, mais suave e suportável. Aprende-se a esperar para ver como vão ficar as coisas, o desespero diminui, e surge um tipo de esperança meio fraca, ainda acompanhada de um certo desamparo. O sentimento de ser frágil, vulnerável, não vai embora, ele obriga a descobrir um jeito de dar valor positivo à fragilidade humana, associando-a a algum ganho, tornando a pessoa mais sensível e humana. Isso tudo é o que comumente chamamos de “atravessar um luto”, é perder para ganhar em delicadeza, insight, novas formas de sentir prazer e fazer contatos. Parece elementar, mas dificilmente consegue-se atravessar tudo isso sozinho; o processo exige a companhia de alguém que suporte a travessia sem atrapalhar muito, sem ficar muito ansioso e apressado. O luto é um procedimento comum, parecido com a digestão biológica, existe para “deixar passar o passado” e para abrir o futuro. Entretanto, apesar de ser tão básico, mobiliza um montante tão insuportável de afetos que é algo do qual tentamos fugir através de todas as maneiras possíveis e imagináveis. Fugindo dele, perde-se o contato com o mundo e mergulha-se na depressão, nos estados maníaco-depressivos e na melancolia. Quem não sente a dor e não realiza o luto de suas expectativas onipotentes infantis e magalomaníacas, entra em depressão, no sentido patológico. Muitas vezes, confunde-se essa depressão melancólica com uma boa e salutar capacidade de tristeza: é preciso poder entristecer-se diante do que na vida vai sendo perdido, vai ficando para trás, mas sem o que a vida estanca e se repete, sem que nada de novo possa surgir pela frente. A “posição depressiva”, desde que bem atravessada, dá lugar à capacidade de entristecer-se sem se desesperar.

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